
A cabeça de Battisti
 O carrão preto, motorista de libré, parava na porta da embaixada    do Brasil em Roma, na Piazza Navona, em 90 e 91. Descia um senhor baixo, 80    anos, terno escuro, colete cinza, camisa branca e gravata. Um dos homens mais    poderosos da Itália, conde do Papa, banqueiro de Deus, ia buscar-me para    almoçar, a mim, pobre marquês, adido cultural. 
 Íamos aos mais discretos e charmosos restaurantes de Roma, com os melhores    vinhos da Itália. Às vezes, o almoço era no palacete dele,    na Vila Archimede, no alto do Gianicolo ou, em um domingo de sol, em sua casa    na serra, em Grottaferrata, a poucos quilômetros de Roma. Simpático,    vivido, o conde Umberto Ortolani era uma figura “ambígua, misteriosa”    (como dizia o “La Republica”). Mal falava, só perguntava. 
 Dele eu sabia que era conde da Santa Sé,“gentiluomo di sua Santitá”,    banqueiro do Vaticano, sócio-diretor do jornal “Corriere de la Sera”.    Havia conhecido num vernissage no Masp, em São Paulo, em 84, apresentado    pelo jornalista e editor José Nêumanne, do “Estado de S. Paulo”.  
 Ortolani
 O que ele queria de mim? Queria o Brasil. Queria que eu convencesse o embaixador    Carlos Alberto Leite Barbosa a convencer o Itamaraty a lhe entregar um novo    passaporte, pois tinha cidadania brasileira dada pela ditadura militar a pedido    dos Mesquita do “Estado de S. Paulo” e os dois que tinha, o italiano    e o brasileiro, o governo italiano lhe tomara ao descer em Roma, depois de oito    anos asilado no Brasil.
 Impossível. Quem tomou o passaporte foi o governo italiano. O Brasil    nada tinha com aquilo. Mas ele achava que, insistindo, talvez conseguisse. 
 Queria fugir de novo. Ou não tinha companhia melhor para sua conversa    admirável sobre a política italiana e seus magníficos vinhos.
 Levou-me a seu escritório na Via Condotti, 9, em cima da Bulgari :
 - Desta sala saíram sete primeiros-ministros: Andreotti, Craxi etc.
 Um livro
 O conde é uma história exemplar do satânico poder dos banqueiros,    mesmo quando, como ele, um banqueiro de Deus, vice-presidente do banco Ambrosiano,    do cardeal Marcinkus, até hoje foragido nos Estados Unidos. 
 Os que criticam, inteiramente sem razão, o presidente Lula e o ministro    Tarso Genro, por terem dado asilo político ao italiano Cesare Battisti,    deviam ler um livro imperdível: “Poteri Forti” (“Fortes    poderes, o escândalo do Banco Ambrosiano”), do jornalista italiano    Ferruccio Pinotti, abrindo as entranhas do poder de corrupção    do sistema financeiro, de braços dados com governos, partidos, empresários,    maçonaria, máfia.
 Em junho de 1982, foi encontrado estrangulado em Londres, embaixo da “Blackfriars    Bridge” (“a ponte dos Irmãos Negros”), o banqueiro italiano    Roberto Calvi, presidente do Banco Ambrosiano, que acabava de quebrar, e tinha    como diretores o cardeal Marcinkus, o conde Ortolani e o chefe da P-2 italiana    (maçonaria), Licio Gelli.
 Mãos Limpas
 Nos dias seguintes, na Itália e na Inglaterra, apareceram assassinados    vários outros ligados a Calvi. (Não é só em Santo    André que se limpa a área.) No meio da confusão estava    Ortolani, um dos quatro “Cavaleiros do Apocalipse”. Quando, a partir    de 90, a “Operação Mãos Limpas” chegou perto    deles, o conde, olhando Roma lá de cima do Gianiccolo, me dizia:
 - Isso não vai acabar bem. 
 Depende o que é acabar bem. O Ministério Público e a Justiça    enfrentaram a aliança satânica, que vinha desde 45, no fim da guerra,    entre a Democracia Cristã e a máfia italiana. Houve centenas de    prisões, suicídios. Nunca antes a máfia tinha sido tão    encurralada e atingida. Responderam com bombas detonando carros de procuradores    e juízes. Mas os grandes partidos políticos aliados (Democrata    Cristão, Socialista, Liberal) explodiram. O Partido Comunista, conivente,    se desintegrou. E meu amigo conde, condenado a 19 anos, morreu em 2002, aos    90 anos. 
 Negri e Battisti
 A “Operação Mãos Limpas” não teria havido    se um punhado de bravos jovens valentes e alucinados, das Brigadas Vermelhas    e dos Proletários Armados pelo Comunismo (PAC) não tivesse enfrentado    o Estado mafioso. 
 O governo, desmoralizado, usava a máfia para eliminá-los. Eles    reagiam, houve mortos de lado a lado e prisões dos líderes intelectuais,    como o filósofo De Negri (asilado na França) e o romancista Cesare    Battisti (asilado na França). Estava lá, vi, escrevi, acompanhei    tudo.
 Foram eles, os jovens rebeldes das décadas de 70 a 80, que começaram    a salvar a Itália. Se não se levantassem de armas na mão,    a aliança Democracia Cristã, Partido Socialista, Liberais e máfia    estaria lá até hoje. Berlusconi é o feto podre que restou,    mas logo será expelido.
 Salomés
 O corrupto Chirac, a pedido de Berlusconi, retirou o asilo político    de Battisti, que o Brasil agora lhe deu. Tarso Genro e Lula estão certos.    O problema foi, era, continua político. O fascista Berlusconi (primeiro-ministro)    é apoiado pelo desfrutável velhinho comunista Giorgio Napolitano    (presidente) que se escondeu quando o juiz Falcone (assassinado) e o procurador    Pietro (hoje no Parlamento) fizeram a “Operação Mãos    Limpas” 
 Não têm autoridade moral nenhuma. Por que não devolveram    Caciolla, o batedor de carteira do Banco Central, quando o Brasil pediu? 
 As Salomés de lá e de cá querem entregar a cabeça    de Battisti à máfia.
Sebastião Nery - Colunista do Tribuna da Imprensa